Ainda-Não: Sociologia e Utopia
Em tempos de crise e de perplexidade, que utopias nos podem valer? Como seria uma sociedade mais justa? Que papel tem cada um/a de nós na sua construção? Partindo do conceito de Ernst Bloch - "ainda-não" - conversamos com sociólogos e sociólogas em torno de propostas concretas para um mundo melhor. Podcast do IS-UP, a partir de conversas conduzidas pela investigadora Inês Barbosa. Trabalho financiado pela FCT no âmbito do Projeto UIDB/00727/2020.
Isabel Dias é investigadora do Instituto de Sociologia da Universidade do Porto e professora catedrática na FLUP. A sua atividade de investigação tem-se centrado na problemática da violência doméstica e de género, envelhecimento, abuso de idosos, trabalho feminino e saúde ocupacional. Neste episódio do podcast, fala-nos da sua trajetória pessoal e de como a consciência de classe e de género, desde cedo, marcou as suas escolhas no campo da sociologia, destacando a importância da relação entre cidadania, conhecimento e emancipação. Mais do que de utopia, considera que é o conceito de “paradoxo” que tem guiado a sua pesquisa. Face aos tempos “ameaçadores” em que vivemos, defende que a promoção da igualdade, da democracia e dos direitos humanos seja um exercício diário, nunca os tomando como garantidos.
Autor de 20 livros e de mais de 100 artigos ou capítulos, Peter Mayo é professor na Universidade de Malta, onde foi presidente do Departamento de Artes, Comunidades Abertas e Educação de Adultos e do Departamento de Estudos da Educação. É, também, responsável pela UNESCO Chair in Global Adult Education sediada na mesma universidade. Para si, um mundo socialmente justo tem de “transcender” o sistema capitalista, que é essencialmente um sistema de exploração. A luta contra todos os tipos de exploração começa, segundo o próprio, pela reflexão “sobre si mesmo” e o quanto explora outras pessoas “na vida quotidiana” ou “nas relações familiares”. O fim do racismo e as alterações climáticas são os outros dois pontos fundamentais, para si, na luta por um mundo mais justo, mais próximo da “utopia”. Autor de Gramsci, Freire e a Educação de Adultos, Peter Mayo defende uma utopia ecossocialista de “harmonia na biodiversidade”, prolongando a unidade na diversidade defendida por Paulo Freire, defendendo o respeito pela individualidade de cada um na vida social coletiva e pela relação entre a humanidade e a natureza.
Gissele Alves é docente do Instituto Federal de Brasília/IFB, membro do Núcleo de Estudos de Linguagem e Sociedade do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares da Universidade de Brasília e dos grupos de pesquisas GECRIA – Educação crítica e autoria criativa e Linguagem e Práticas Sociais. É, também, investigadora em Estudos Críticos do Discurso, Estudos Críticos do Letramento e Sociologia da Educação e da Juventude, com foco em construções identificacionais, representações discursivas, discursos do letramento, educação superior e juventudes. A analista do discurso movimenta-se, há três décadas, num campo interseccional entre língua e sociedade, situando-se nos “estudos críticos do discurso” que a trouxe para a área dos estudos sociológicos e do conflito social. Considera-se como uma “realista esperançosa”, defendendo a posição utópica de “assumir ontologicamente que a vida social é um sistema aberto” e “passível de mudança por meio da agência” que, considera, é uma “força criativa”.
Socióloga, etnógrafa, feminista, é co-diretora do Centre for the Study of Women and Gender da Universidade de Warwick, Reino Unido. Foi aí que encontrou um espaço onde consegue discutir e negociar a “suposta dicotomia entre a cientista e ativista”. Preocupada com os retrocessos em termos de género e sexualidade, pela polarização e proliferação de discursos simplistas e imediatos, centra o seu trabalho na complexidade das relações de poder (nomeadamente, no âmbito das questões de género). Sente falta de espaço para o aprofundamento de temas, para o debate. Considera que o conhecimento sobre as contradições sociais e sobre as dimensões invisíveis dos fenómenos (tudo aquilo que acontece debaixo da superfície) é fulcral para transformar a sociedade. A sua prioridade é “pensar numa forma de apaixonar as pessoas pela complexidade” e fazer perceber que não há “uma resposta que vai servir para tudo”, sendo “preciso estar sempre a aprender”.
Cláudia Marisa é investigadora integrada do IS-UP e professora na ESMAE – Escola Superior de Música e Artes do Espetáculo. Transitando entre a sociologia e a arte – que, no seu entender, partilham um olhar semelhante sobre o mundo – Cláudia fala-nos das suas inquietações: as desigualdades, a segregação, a desumanização. Ao contrário do “distanciamento brechtiano” que tinha por objetivo acordar e agitar o público, diz-nos que as novas formas de distanciamento e alienação têm servido para nos adormecer. Vê na sociologia um “ato de utopia” e aspira a uma sociedade em que o ser humano não seja somente um “número no Excel”. Deseja que se possa recuperar a sensibilidade e possamos ter tempo para contemplar, brincar ou, simplesmente, existir.
Manuel Sarmento é professor catedrático do Instituto de Educação da Universidade do Minho e uma das referências mais importantes da Sociologia da Infância, dedicando grande parte da sua pesquisa ao estudo das identidades e culturas infantis. Nesta conversa, reforça a dimensão política da participação, evocando movimentos coletivos de crianças em várias partes do globo. Salienta também as lacunas que persistem na garantia de direitos plenos às crianças, evocando a necessidade de políticas públicas integradas que contem com o seu envolvimento efetivo.
Sons Perdidos e Achados
Este podcast, coordenado pela investigadora do IS-UP, Paula Guerra, é um espaço de participação cidadã de músicos e músicas da cidade do Porto - e de todo o país - que, através da opção pela liberdade criativa, todos os dias reinventam os nossos quotidianos através das possibilidades de realização, de liberdade e de resistência oferecidas pelo trabalho artístico dos sons e das palavras. Parceiros: KISMIF Conference, CITCEM, IS-UP.
Vítor Rua nasceu em Mesão Frio em 1961. Em 1980, no Porto, funda o grupo rock GNR. Em 1982 cria, com Jorge Lima Barreto, os TELECTU, grupo de música improvisada e eletroacústica live. Dele se disse: “a sua obra reflete um trabalho de recorte pós-moderno, preliminar, variegado, de recusa empirista da confinação cultural, laivo nas fronteiras estilísticas e ideoletais”. Tido como o Zappa português, Vítor sempre recusou classificações, pois não é fácil categorizá-lo. Do rock ao jazz, da improvisada à contemporânea, dos GNR aos TELECTU, mas igualmente a solo, é uma personagem singular na música portuguesa aberta à mistura, ao hibridismo, à velocidade, ao cosmopolitismo, à vertigem. À semelhança de Zappa, o humor e a ironia utilizados para comentar a contemporaneidade desempenham um papel importante na sua postura enquanto músico e compositor.
Músico multifacetado e prolífico, Vítor Rua obriga a uma entrevista em duas partes: na segunda, Paula Guerra trocará palavras com a persona rock de Vítor Rua; nesta primeira, Paulo Gusmão Guedes tenta abordar a sua produção na área da música contemporânea, improvisada ou escrita, incluindo expressões pós-rock ou pós-jazz, palavras convenientes para (não) descrever uma música que tem o seu quê de indescritível. Por isso mesmo, citam-se e ligam-se abaixo (Spotify ou Youtube), na mesma ordem em que são abordadas na entrevista, as obras que Vítor Rua escolhe para representarem momentos-chave da sua carreira, assim como outras de que é autor e que vai referindo ao longo de uma conversa que é tudo menos linear, e também por isso mais interessante. Como de outras músicas também se fala – de Toy e Hildegarda de Bingen, Stockhausen e Monk, Zappa e Zorn, Vangelis e Terterian – aproveita-se ainda para incluir ligações a obras destes dois últimos que suscitam rasgados elogios de Vítor Rua.
Victor Torpedo – também conhecido por Victor Silveira, Victor Clash, Vitinho, o espanholito da Sé Velha de Coimbra – nasceu em 1972 em Coimbra. A partir dos 14 foi só punk, rock’n’roll e rockabilly, primeiro com Paulo Eno e os Objectos Perdidos, depois outro Paulo e os Tédio Boys, Subway Riders, 77 e os épicos The Parkinsons. “Sou como o Lou Reed, trabalhou meio dia e desistiu”, disse. Acabou de lançar, em março de 2021, o quinto álbum a solo intitulado “Punk/Pop and Soft Rage” pela Lux Records. Chegou a chamar casa a Inglaterra, sentiu na pele a London Calling, mas voltou a Coimbra para estar “com o gangue”. Pintor e boxista nas horas vagas, Torpedo – como o herói da banda desenhada – assume que gosta de tudo olhos nos olhos, não gosta de atuações online, prefere a presença carnal da música. Para Victor, o “punk é mais do que só uma mera referência musical ou só uma estrada musical, são várias. Para mim o punk é multiplicação, diversidade e liberdade.”
Tó Trips nasceu em Lisboa, na freguesia do Castelo, em 1966, estando registado em Benfica, onde morou durante a sua infância e juventude, numa rua entre a Praça de Espanha e Sete Rios. Tó tem o rock’n’roll incorporado desde muito cedo, muito por causa do Rock Rendez Vous e do Johnny Guitar. Tó Trips é, manifestamente, um dos músicos portugueses mais interessantes das últimas décadas. Começou nos anos 1980 com os Amen Sacristi e participou nos Santa Maria Gasolina em Teu Ventre!; nos anos 1990, viveu intensamente os Lulu Blind; nos anos 2000, do encontro feliz com Pedro Gonçalves criou os Dead Combo, participou nos Ladrões do Tempo e tem feito constantes incursões a solo. Conversar com o Tó Trips é fazer uma viagem ao Portugal contemporâneo com paragens no punk/hardcore, na no-wave, no jazz, na guitarra de Carlos Paredes, no noise, na world music. É também fazer uma viagem pelo mundo (do rock), não só pelos seus sons, mas pelas suas imagens, artefactos, cenários.
Nascido em Moçambique há 50 anos, Paulo Furtado deu-se a conhecer com os Tédio Boys nos anos 1990. Com o final da banda, fundou, em 2000, os Wraygunn e em 2002 estreou-se a solo, como The Legendary Tigerman. Paulo tem vários mundos e várias artes dentro de si. É compositor de bandas sonoras. É um apaixonado pela fotografia. Produziu inúmeras canções para cinema, tendo-lhe sido atribuído por duas vezes o Prémio Sophia para melhor banda sonora original. Depois de iniciar as conversas com este homem-mundo em 2008, voltamos agora a conversar com o Tigre – neste momento marcante de crise pandémica global – e fomos muito para além do blues.